ENTREVISTA COM MARCOS TERENA
A maior referência indígena brasileira em organismos internacionais, Marcos Terena nos concedeu essa entrevista exclusiva. Revelou que o presidente Lula, seu companheiro, traiu os índios ao diminuir suas terras. Elogiou o ex-governador do Acre, Jorge Viana e disse que a Universidade da Floresta (UFAC), que chamou de “coisa de branco”, não poderá tratar o índio como se fosse apenas um banco de dados de onde se extrai conhecimento. Disse que os índios têm mesmo que participar do Exército e precisa defender a Amazônia dos invasores estrangeiros, porque os índios são brasileiros e já lutaram muitas vezes pelo Brasil.
ORNELAS – O senhor pode fazer uma análise da importância das comunidades indígenas no debate da biodiversidade?
MARCOS TERENA – Esse ano vamos ter no Brasil (em Curitiba, Paraná), no mês de março, a conferência da ONU sobre biodiversidade, quando estarão sendo analisados o acesso aos conhecimentos tradicionais dos índios, e também dos ribeirinhos, seringueiros, quilombolas. Nesse sentido o Brasil, que tem mais duzentos povos indígenas, com biomas como a Amazônia, o Panatanal, Serrado, Mata Atlânitca, e é muito rico em biodiversidade, vai tratar essa questão. E nós os índios, primeiros habitantes do Brasil, tradicionalmente conhecedores de todos esses biomas, não podemos ficar de fora. Não é querendo desmerecer os outros brasileiros, mas nós já estávamos aqui antes da chegada do colonizador. Por isso estamos conversando com as lideranças e explicando que as Nações Unidas estão tratando essa matéria, para saber como entrar na ciência indígena e para que eles se tornem donos, proprietários desse saber.
ORNELAS – De que forma o índio pretende se relacionar com esses mercados?
MARCOS TERENA – Esses conhecimentos indígenas são seculares, que foram tratados com a possibilidade de serem repartidos. E sempre foi assim, a medicina, a alimentação, sempre foi repartido coletivamente, não para ganhar dinheiro, mas para trazer qualidade de vida para as famílias, para as crianças e velhos. Só que o mundo do homem branco não trata desse conhecimento dessa maneira. Cada planta, cada conhecimento, segundo a filosofia do homem branco, precisa ter um dono. A Coca-Cola é proprietária de um tipo de refrigerante, a Antarctica também e nós, os índios, sempre tratamos desses conhecimentos com liberdade. Por isso que nessa relação nova não podemos tratar isso como se fosse uma coisa exclusivamente indígena, porque a gente passa a ter uma relação com um sistema colonizador que, sem respeitar os direitos indígenas, procura piratear esses conhecimentos.
ORNELAS – Já são realidades os projetos do governo da Universidade da Floresta e do Instituto da Biodiversidade, no Acre. O senhor acredita que os povos da floresta poderão ser beneficiados?
MARCOS TERENA – Esses sistemas não são indígenas, são da cultura do homem branco, institutos, universidades, etc. Nós temos conversado com nossas lideranças para também compartilhar esses saberes, mas que o índio não seja apenas uma fonte de pesquisa, o índio não é um celeiro de banco de dados, que o pesquisador branco vai lá, pega o seu saber e vende. O índio tem que fazer parte do processo, para saber até onde está indo o benefício e de que forma está sendo usado. O pajé de hoje aprendeu com o pajé velho, que aprendeu com outro mais velho. Nós queremos que o conhecimento seja passado para o pajé do futuro. Então, se uma universidade tem professores que se formaram na USP, ou em Oxford, Havard, mas perto do índio eles não sabem nada. A verdadeira universidade da floresta é o conhecimento indígena, não é apenas uma terminologia.
ORNELAS – O senhor pode fazer uma análise da importância das comunidades indígenas no debate da biodiversidade?
MARCOS TERENA – Temos 230 povos indígenas, com 180 diferentes línguas vivas. A população é relativamente pequena comparada com a população brasileira, temos em torno de 500 mil indígenas vivendo em comunidades. Nós já fomos em torno de 10 milhões, na época da chegada de Cabral aqui no Brasil. Isso quer dizer que existem centenas maneiras diferentes de ver o conhecimento tradicional. Nós queremos mostrar ao governo que somos partes integrantes do processo. Não podemos ser tratados como incapazes, mas compete a nós, os indígenas nos organizarmos para conscientizar o governo, seja ele de que lado for, esquerda, direita ou de centro. Aliás a nossa expectativa em relação ao Lula antes era uma e a realidade é bem diferente. Tanto que o presidente da FUNAI, que deveria cuidar dos interesses dos índios, afirma que o índio não tem que lutar mais pela terra. Mas esse é o papel do governo, demarcar as terras indígenas, Então nós não queremos mais antropólogos, ou indigenistas, como condutores desse processo.
ORNELAS – O senhor pode falar um pouco da sua formação, da sua origem?
MARCOS TERENA – Eu sou do Pantanal, no Mato Grosso do Sul, sou do povo Terena. Nós conquistamos o Pantanal para o Brasil mas não temos terra. A menor aldeia do Brasil tem só quatro hectares e pertence aos Terena, fomos traídos por Dom Pedro e Duque de Caxias, mas nós nos organizamos e levamos nossos jovens para as universidades e apesar disso nunca perdemos nossos valores espirituais. Fui escolhido para conduzir esses trabalhos da ONU aqui no Brasil, mas isso não terá nenhum valor se eu não puder compartilhar isso com os outros líderes indígenas. Sou piloto de avião da FUNAI, por isso conheço bem essa e outras regiões do Brasil. Atualmente estou nesse trabalho voltado para a defesa dos conhecimentos tradicionais, mas também estou trabalhando um outro processo, que é o direito indígena aos novos conhecimentos, como o acesso à internet. Tem gente que pergunta como conciliar tradição e modernidade. Mas essa foi exatamente a grande rasteira que a civilização moderna deu nos índios, deixando-os de fora do processo de modernização. Somos inteligentes e capazes, apesar de sermos tratados como incapazes, mas os índios demonstram grandes valores de relações humanas e o meu papel é exatamente o de fomentar esse tipo de conhecimento para o Brasil, defender os patrimônios brasileiros, mas sempre respeitando as tradições indígenas.
ORNELAS – Nas últimas décadas vimos inegáveis avanços sociais indígenas, e alguns índios até se destacaram na política nacional, como o Juruna, deputado pelo Rio de Janeiro. Mas o Estado aumentou sua tutela para com esses povos. De que forma o índio pode diminuir essa dependência?
MARCOS TERENA – Na verdade hoje não temos nada. A gente aposta que o novo governo que vai tomar posse no início do ano tenha um compromisso com os indígenas. Nós queremos estar no sistema de poder para gerenciar nossos recursos com responsabilidade, para dar certo ou não. Essas lideranças indígenas conseguiram mostrar que o índio não é uma peça folclórica, transitória. O índio está vivo, não foi extinto. Pelo contrário, se por um lado alguns índios que recebem algum benefício, como da Vale do Rio Doce, não queriam mais fazer flecha, caçar, dançar ou pescar, por outro criamos os jogos indígenas que reúne jovens de todo o Brasil. Para isso parte do dinheiro veio do governo, temos que aprender a administrar esses recursos para participar do poder. Já tivemos governo militar, do Collor, do Sarney, do sociólogo e agora temos o de um companheiro. Qual foi o melhor? O governo Lula foi o único, nos últimos tempos, que diminuiu terra indígena na demarcação. O governo Fernando Henrique nunca fez isso, e o Lula, nosso companheiro de caminhada, fez isso.
ORNELAS – Recentemente houve uma polêmica porque uma senhora indígena estava treinando tiros com o Exército. Qual a sua opinião sobre isso?
MARCOS TERENA – Nós Terena não éramos soldados, mas ajudamos a assegurar o Pantanal para o Brasil. Não recebemos medalhas e nem terras por isso, mas somos brasileiros. Aqui na floresta amazônica, se o governo brasileiro quiser mesmo protege-la não pode menosprezar a capacidade indígena e nem dos camponeses da região. Esses são conhecedores de todas as armadilhas e de todos os saberes da floresta amazônica.
ORNELAS – Mesmo contra toda a pressão de organismos internacionais que discordam dessa tese?
MARCOS TERENA – Claro, sou defensor do nosso país integral, como ele é. No Pantanal temos a segunda maior reserva de água potável do mundo. Qual o plano de ação que esse governo tem para que esses recursos não sejam invadidos pelos interesses das multinacionais. Os EUA estão montando uma base militar na Represa Itaipu, do lado paraguaio. Quando você fala da Amazônia você está falando de vários paises e se os estrangeiros não entrarem por aqui vão entrar por um país mais frágil politicamente, como é o caso da Colômbia. Eles já estão lá, então eles já estão na Amazônia e a mesma coisa vai acontecer com o Aqüífero Guarani. Criar polêmica por causa da figura de uma indígena que estava com um fuzil é muita pobreza, se vale ou se não vale. E a determinação dos povos indígenas, como é que fica?. Uma vez eu vi uma mulher pilotando um avião da Riosul. As mulheres brasileiras são guerreiras, e na relação indígena ela ainda tem mais força que o homem.